domingo, 29 de novembro de 2015

Possibilidades

Há três anos, um jovem rapaz de barba cheia se aproxima de uma menina de olhos castanhos sentada na primeira fileira da classe. Ele segura um livro de astrologia e, após hesitar um segundo, resolve sentar ao lado da moça. Não se sabe ao certo quem nem porquê, mas começaram a falar sobre astrologia.
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Há dois anos, um jovem rapaz sem barba passa pela rua de mãos dadas com uma moça. Param num ponto de ônibus e se abraçam. No banco uma senhora sentada com o netinho e duas moças conversando trivialidades. Uma das moças observa o rapaz, o acha bonito e se pergunta sobre a história daquele casal. Ele vê a moça por um instante e observa que seus olhos são muito castanhos e refletem a luz das árvores. Segundos depois a moça de olhos castanhos entra no ônibus. Nenhuma daquelas pessoas volta a se encontrar.
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Há um ano, uma moça bebe uma mistura de vodka e refrigerante numa festa da faculdade. Parece que se perdeu e está a procura de alguém. Avista uma silhueta familiar e vai em sua direção. Pega no braço do rapaz e pergunta por onde ele andou, que ela tinha tentado telefonar mas ele não atendia. O moço se vira e ela percebe que foi um engano. Uma barba densa a encara, sorri e é gentil com o erro. Os olhos castanhos se envergonham, mas não podem deixar de rir. Nasce ali uma conversa entre estranhos.
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Há um mês, uma garota de olhos castanhos e jaleco branco e dirige ao corredor portando um prontuário. Chama por o nome de um jovem e aguarda. Um rapaz sério, com barba grande e cabelo ondulado se aproxima. Se apresentam e seguem em silêncio até a sala. Lá, começam uma conversa sobre os problemas dele. Está triste. Ela não consegue lidar com aquele sintoma emocional e se confunde com as perguntas a se fazer. Ele parece impaciente, mas tem compaixão com aquela estagiária, ou seja lá o que ela seja. Seguem a consulta tentando entrar em sintonia, mas ela parece fugir deles.
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Dez anos depois, uma mulher de olhos castanhos está sentada num portão de embarque no aeroporto, um rapaz barbudo senta-se a duas cadeiras de distância. Ela lê um livro impaciente com o retorno para casa. Ele fala ao telefone com alguém e pede-lhe que venda as ações. A mulher observa o homem mais de perto: o seu tipo. O voo é cancelado. "Ótimo", suspiram juntos. E então um sorriso. De repente, um outro homem se aproxima e senta-se ao lado da mulher. Se beijam e se põem a conversar sobre os filhos. O rapaz barbudo volta ao telefone, se perguntando se já viu aquela mulher em algum lugar.
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segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Sobre a solidão



Foi uma conversa profunda, rodeada pelo barulho indistinto das caixas de som. Dentro estava pior. Vários pensamentos aparecem ao mesmo tempo, nenhum se instala. É uma bagunça imensa. Gritar talvez resolvesse, mas não é um momento apropriado. Guarde. Limpe essa bagunça. A mente pensa, mas sabemos que não é só razão aqui. Uma pedra pesada dentro do estômago entrega a verdade. Não dá mais para acreditar nessa história de razão e de emoção, já tem algum tempo que aprendi que elas trabalham juntas. Só que o incômodo que a emoção provoca no corpo pode não ser gostoso de se sentir. Foram várias e várias madrugadas para perceber que ter “se jogado” em tantas histórias pode ter feito o presente, mas estava na hora de olhar pra frente. Como é possível continuar fazendo as mesmas escolhas? Por uma esperança que as coisas vão ser diferentes. Histórias se repetindo na sua vida, na vida dos vários alguéns que você já foi e será. É muito difícil deixar velhos hábitos para atrás quando você pensa no que poderia estar deixando de ter no futuro. E você se deixa levar. Quantas bocas é preciso beijar para se perceber que a solidão é sua única companhia? Sua única certeza. Sua única amiga. E, ainda assim, sempre foi meu maior medo. Todas essas pessoas que você ama. E aquelas que você quase amou. Por um segundo você disse que houve uma conexão especial, mas nada disso é verdade. Ninguém pode entender quem você é por dentro e por mais que cheguem perto, não é o bastante. Não dá para ignorar essa intuição. Ela sempre esteve aqui.

domingo, 9 de agosto de 2015

Telegrama - Zeca Baleiro



Eu tava triste
Tristinho!
Mais sem graça
Que a top-model magrela
Na passarela
Eu tava só
Sozinho!
Mais solitário
Que um paulistano
Que um canastrão
Na hora que cai o pano
Tava mais bobo
Que banda de rock
Que um palhaço
Do circo Vostok

Mas ontem
Eu recebi um Telegrama
Era você de Aracaju
Ou do Alabama
Dizendo:
Nêgo sinta-se feliz
Porque no mundo
Tem alguém que diz:
Que muito te ama!
Que tanto te ama!
Que muito muito te ama,
que tanto te ama!

Por isso hoje eu acordei
Com uma vontade danada
De mandar flores ao delegado
De bater na porta do vizinho
E desejar bom dia
De beijar o português
Da padaria

Hoje eu acordei
Com uma vontade danada
De mandar flores ao delegado
De bater na porta do vizinho
E desejar bom dia
De beijar o português
Da padaria

Mama! Oh Mama! Oh Mama!
Quero ser seu!
Quero ser seu!
Quero ser seu!
Quero ser seu papa!

Eu tava triste
Tristinho!
Mais sem graça
Que a top-model magrela
Na passarela
Eu tava só
Sozinho!
Mais solitário
Que um paulistano
Que um vilão
De filme mexicano
Tava mais bobo
Que banda de rock
E um palhaço
Do circo Vostok

Mas ontem
Eu recebi um Telegrama
Era você de Aracaju
Ou do Alabama
Dizendo:
Nego sinta-se feliz
Porque no mundo
Tem alguém que diz:
Que muito te ama!
Que tanto te ama!
Que muito te ama!
Que tanto, tanto te ama!

Por isso hoje eu acordei
Com uma vontade danada
De mandar flores ao delegado
De bater na porta do vizinho
E desejar bom dia
De beijar o português
Da padaria

Hoje eu acordei
Com uma vontade danada
De mandar flores ao delegado
De bater na porta do vizinho
E desejar bom dia
De beijar o português
Da padaria

Me dê a mão vamos sair
Pra ver o sol!

Mama! Oh Mama! Oh Mama!
Quero ser seu!
Quero ser seu!
Quero ser seu!
Quero ser seu papa!

Hoje eu acordei
Com uma vontade danada
De mandar flores ao delegado
De bater na porta do vizinho
E desejar bom dia
De beijar o português
Da padaria

Mama! Oh Mama! Oh Mama!
Quero ser seu!
Quero ser seu!
Quero ser seu!
Quero ser seu papa!

"Me dê a mão vamos sair
Pra ver o sol"

Para aquecer

A noite estava escura. O céu cobria o vilarejo em cinza. Várias pessoas pelas ruas. Os sons dos carros competindo por atenção. Nada disso importa. O mar chama. Aqueles corpos vão atender seu clamor. A pele sente o frio que o vento traz, a areia ainda úmida sob os pés descalços. Sal e metal, sabores que queimam as narinas. Um passo, uma marola. Dois passos, água até os tornozelos. Três, quatro, cinco... quarenta passos, quadris molhados. A água está quente. É possível sentir a energia do sol que já se pôs. Essa energia agora é dos corpos. Eles mergulham até cobrir o último fio de cabelo. À emersão, as roupas grudam-se à pele, desenhando-a. Uma corrida até a areia. Uma corrida pela areia, para aquecer.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Home



No horizonte um pedaço do céu se colore num dourado-pôr-de-sol, contrariando a escuridão que lhe faz pano de fundo. Nunca havia parado pra pensar na perspectiva de que aquilo poderia ser o reflexo das luzes de uma cidade se aproximando. Olhando com mais atenção, percebo que são nuvens acima de uma cidade que já nem sei mais qual. O carro está mais silencioso que o normal sem a voz da minha mãe pra quebrar a monotonia da noite. Apenas alguns metros de estrada esburacada são visíveis à frente. Meu pai boceja com frequência, deixando transparecer o cansaço de um dia de viagem. Vez por outra conta uma piada que nos faz gargalhar, o tipo de risada sincera que você não costuma ver por aí. Não na cidade grande. No rádio improvisado toca Zé Ramalho, Avohai, o único gosto musical que poderia agradar nós dois. Mergulho na minha infância. Relembro meus primos com quem convivi durante toda minha vida e agora representam conversas escassas entrecortadas tempo afora. Relembro brincadeiras de criança a muito perdidas. É um sentimento bom de coisas que nunca voltarão. Quem diria o rumo que nossas vidas tomariam? E cá estou eu, com 20 anos, voltando pra casa. Há inúmeras coisas que se perderam de mim. Isso ultrapassa, é claro, o meu sotaque, há muito desfeito. Cada metro que me aproxima da minha origem só me mostra quem já não sou. Sinto falta disso. Já não há o sentimento de pertencer. Não há raízes. Me pergunto se a música provoca os mesmos sentimentos no meu pai. Mas percorremos em silêncio o restante do trajeto, lutando contra o sono. Seguindo agarrados a ideia do conforto de chegar em casa.

O amor bate na aorta - Drica Moraes (Carlos Drummond de Andrade)